Em tempos de pandemia, a saúde mental e as relações sociais são mais do que nunca postas à prova. Assolado por um vírus desconhecido, o Mundo estremeceu, parou e mudou. Cresceu a insegurança, com ela o medo e a incerteza, adensando dúvidas, diluindo certezas e estabelecendo novas rotinas.
Até o vocabulário mudou e “confinamento” tornou-se uma palavra recorrente. «O sentido de controlo sobre as nossas vidas deu lugar à imprevisibilidade e à incerteza face ao futuro», diz a psicóloga do ACeS Gerês/Cabreira Ana Luísa Pereira em entrevista ao jornal “O Amarense”.
De que forma a pandemia e todo este contexto afectaram a saúde mental?
A pandemia começou a ameaçar a nossa saúde mental antes mesmo de nos bater à porta. Foi há já um ano a primeira infecção por Covid-19 na província chinesa de Wuhan e foram necessários pouco mais de dois meses para o primeiro caso em Portugal. Fomos inundados pelos alarmantes números da pandemia, à medida que ela devastava toda a Europa e se aproximava vertiginosamente de nós. Durante dois meses não se falou noutra coisa, apesar do tão parco conhecimento que existia sobre a matéria.
E esse desconhecimento foi fazendo crescer o medo?
Desde o início fomos ameaçados pelo medo e pela incerteza. A contra informação e as notícias falsas acumulavam-se, ao mesmo tempo que os próprios organismos oficiais evidenciavam uma certa insegurança ao veicular informação contraditória – recorde-se, por exemplo, os avanços e retrocessos na orientação para o uso de máscaras. Somámos, por isso, insegurança. É a sensação de impotência de quem vê um comboio aproximar-se a alta velocidade em sua direcção sem poder fugir.
Março é o mês em que o país pára. Que desafios trouxe o confinamento?
Desde Março, todos fomos desafiados de algum modo. Os profissionais de saúde, que passaram a prestar cuidados em circunstâncias adversas, tendo simultaneamente que gerir o risco acrescido de contágio pelo coronavírus para si e para os seus. As crianças e os jovens, que se viram forçados às dinâmicas atípicas do confinamento, da tele-escola e do trabalho à distância. Muitos trabalhadores e empresas viram e vêem ainda a sua subsistência ameaçada. As pessoas em situação de pobreza, que estão particularmente desprotegidas face ao vírus.
Doentes que já sofriam de outras patologias, prévias à Covid-19, viram limitado o acesso a cuidados de saúde. Infectados que perderam a vida depois de um internamento duplamente doloroso, quer pelo impacto físico da doença propriamente dita, quer pela impossibilidade de serem acompanhados e acarinhados pelas famílias. E para as famílias que perderam entes queridos sem direito a uma despedida condigna e aos rituais fúnebres tão necessários para um luto mais adaptativo.
Tudo se tornou inesperado e incerto…
O sentido de controlo sobre as nossas vidas, tão importante e regulador para o ser humano, deu lugar à imprevisibilidade e à incerteza face ao futuro. Ao mesmo tempo, vemo-nos privados da expressão de afectos e da riqueza da comunicação não-verbal que se perde atrás das máscaras. Não é difícil intuir a medida em que tudo isto ameaça a integridade psicológica dos indivíduos.
Voltemos à questão do confinamento. Esse tipo de medida restritiva é prejudicial para a saúde mental e para as relações?
Sem dúvida. Somos seres sociais por natureza. Em circunstâncias normais, a nossa vida faz-se em interacção com os outros: família, amigos, colegas de escola ou trabalho, professores, clientes, fornecedores, enfim. São essas relações que em larga medida nos definem, definem quem somos. Estar confinado, castrado nesta dimensão relacional, é uma circunstância anti-natural para nós.
É uma privação de liberdade.
A experiência de estar fechado é por si só insalubre. Quantas vezes no nosso dia-a-dia sentimos que precisamos de “apanhar ar”, “dar uma volta para espairecer”? Porque efectivamente o corpo e sobretudo o cérebro nos pedem essa oxigenação. Ambientes fechados e saturados comprometem não só a função respiratória como também cognitiva. Confinamentos prolongados podem até gerar alterações perceptivas e da acuidade visual e auditiva. Já para não falar de como o confinamento pode ser um convite ao sedentarismo, tão prejudicial à nossa saúde física e mental. Por isso temos insistido tantas vezes com os nossos utentes em confinamento para que se mantenham activos, mantenham uma rotina. E não deixem de se manter em contacto.
Pessoas com propensão para doenças do foro mental, por exemplo depressão, sentem de forma mais severa estas privações?
Completamente. No caso da depressão, onde há uma tendência para o isolamento e para a experiência de sentimentos de solidão, tristeza e desânimo, o confinamento e a distância social que têm sido recomendados como medidas de controlo pandémico funcionam como uma infeliz confirmação, para o doente, de que está verdadeiramente só e de que “nada vale a pena”.
E faz crescer o medo?
Doentes ansiosos, com tendência a temer catastroficamente o futuro, estão atemorizados com a ameaça do vírus. E isto para falar apenas destas que são as duas psicopatologias mais prevalentes na nossa população. Mas há mais exemplos. Doentes psiquiátricos muito descompensados. Pessoas com limitações cognitivas ou em processos demenciais que estão a apresentar um ritmo de declínio funcional muito acelerado. Vejo também na minha consulta doentes com retrocessos relativamente a ganhos terapêuticos conquistados antes da pandemia e várias situações de recaída, ou seja, utentes que já tinham alta e estão a pedir para retomar as consultas.
As pessoas pedem ajuda? Ou continuam reticentes?
Sabemos como a doença mental está tão estigmatizada e a medida em que isso muitas vezes desencoraja os pedidos de ajuda. Ainda há muito a ideia de que os psicólogos “são para os tolinhos”, de que “um homem não chora”, de que a depressão é preguiça, enfim. Não é o preconceito face à minha profissão que me preocupa, mas o quanto isso penaliza quem está em sofrimento, aportando sentimentos de culpa e vergonha que só contribuem para a manutenção e agudização dos problemas. Não posso por isso deixar de alertar para a sensibilidade e empatia especialmente necessárias nesta fase tão desafiante.