Opinião de Hélder Araújo Neto, psicólogo clínico.
A memória é o fio invisível que cose a continuidade da nossa existência. É ela que nos permite saber quem somos, onde estivemos e como chegámos até aqui. Sem memória, a vida seria uma sequência desconexa de momentos sem passado nem aprendizagem. Tal como uma biblioteca viva e mutável, a mente humana arquiva experiências, conhecimentos e emoções, consultando-os e reescrevendo-os à medida que os anos passam.
Do ponto de vista neurológico, a memória é a capacidade do cérebro de codificar, armazenar e recuperar informações. Esta capacidade envolve uma complexa rede de áreas cerebrais, em especial o hipocampo, os lobos temporais e o córtex pré-frontal. Mas, além da biologia, a memória é também um fenómeno psicológico, cultural e profundamente pessoal.
Podemos dividir a memória em várias categorias, consoante a sua duração e função.
Memória sensorial: é o primeiro ponto de contacto com o mundo. Trata-se de uma forma extremamente breve de armazenamento (dura apenas milésimos de segundo) que retém impressões sensoriais, como o brilho de uma luz ou o eco de um som. É através da memória sensorial que decidimos se algo merece atenção.
Memória de curto prazo (ou memória de trabalho): aqui guardamos, por breves instantes, a informação necessária para tarefas imediatas – por exemplo, lembrarmo-nos de um número de telefone antes de o marcar. A sua capacidade é limitada e rapidamente se desvanece se não for reforçada.
Memória de longo prazo: é o grande armazém da nossa história pessoal. Pode manter informação durante dias, anos ou mesmo toda a vida. Dentro desta categoria distinguem-se dois grandes tipos:
i) Memória explícita (ou declarativa): envolve recordações, evocações conscientes – como factos (memória semântica) – ou episódios vividos (memória episódica);
ii) Memória implícita (ou não-declarativa): refere-se a conhecimentos adquiridos, que usamos automaticamente, como andar de bicicleta ou tocar um instrumento, mesmo sem nos lembrarmos de quando os aprendemos.
Existem mais tipos de memória, como a Transitiva, ou a memória Prospetiva, que envolve lembrar de ações futuras, como, por exemplo, tomar um remédio ou ir a uma reunião. Mas não as explorarei aqui pelo, habitual, constrangimento de espaço.
Imaginemos agora a memória como um jardim interior. Alguns momentos são sementes que germinam e florescem, outros caem na terra, mas nunca despontam. As memórias mais vívidas são como árvores antigas, com raízes fundas e ramos que se estendem até ao presente. Mas o jardim não é fixo. A memória, ao contrário de um disco rígido, não guarda uma cópia perfeita dos factos. Ela reconstrói, adapta, esquece e, por vezes, inventa. Cada recordação é também uma interpretação.
Além disso, a memória é um espelho que tanto reflete como distorce. A forma como recordamos um evento depende do nosso estado emocional, das palavras com que o descrevemos e até das versões que ouvimos dos outros. Recordar é, portanto, um ato de criação, não apenas de reprodução. Assim, não recordamos como foi, recordamos como somos.
Esquecer é, muitas vezes, visto como um defeito. Mas, na verdade, o esquecimento é essencial para a saúde mental. Permite filtrar o irrelevante, aliviar a sobrecarga e deixar espaço para o novo. Em certos casos, como nas memórias traumáticas, o cérebro até parece “escolher” esquecer, como mecanismo de defesa.
Por outro lado, quando a memória falha de forma acentuada, como em doenças neurodegenerativas, sentimos a sua ausência como uma perda profunda, da identidade, da autonomia, do tempo vivido.
Hoje, vivemos num tempo em que grande parte da nossa memória foi delegada a dispositivos externos: agendas, motores de busca, redes sociais. Guardamos menos no cérebro e mais na nuvem. Esta externalização traz vantagens, mas também levanta questões: o que acontece quando já não treinamos a nossa memória? E que impacto tem essa dependência na forma como construímos o nosso sentido de identidade?
A memória humana é mais do que um simples mecanismo de armazenamento. É o tecido que une o nosso passado ao presente, e que molda as decisões futuras. É jardim e espelho, arquivo e narrativa. Cuidá-la, estimulá-la e compreendê-la é, em última análise, cuidar da nossa própria humanidade.